O RASI como grau zero de literacia gráfica

O RASI, Relatório Anual de Segurança Interna é, infelizmente, o melhor mau exemplo de utilização de gráficos em relatórios que jamais encontrei.
O RASI como grau zero de literacia gráfica

Introdução

O RASI (Relatório Anual de Segurança Interna) é difícil de descrever para quem trabalha em comunicação visual. Não que seja um objeto complexo, mas todas as palavras que saem parecem demasiado hiperbólicas e injustas, porque o objeto não pode ser assim tão mau. Mas é e, pelo que percebo, sempre foi assim (nos últimos 20 anos).

A versão mais recente, referente aos dados de 2024, é ligeiramente menos má, se observarmos com uma lupa, mas não deixa de ser um objeto estranho vindo de entidades cujo trabalho é gerir e analisar informação.

Pretendo escrever mais do que um artigo sobre o RASI, focando-me em várias áreas. O tema de hoje será o mais óbvio: os maus gráficos. Mas há outros problemas, que serão o tema de outros artigos. Prometo que o grand finale será um artigo em que humildemente proponho as alterações que entendo adequadas.

Gráficos na secção “Infografia”

Os gráficos circulares expressam proporções, o peso de cada segmento num todo. Esse todo tem de fazer sentido. Há muitos todos que não fazem sentido, mas usar anos como segmentos é talvez um dos mais óbvios. Ninguém faz uma análise para determinar que 52% da criminalidade grupal aconteceu em 2024, contra 48% em 2023.

De igual forma, não é feito um gráfico de barras empilhadas para concluir que as apreensões de haxixe decresceram 80.6% entre 2023 e 2024.

Note que, em ambos os exemplos, não é possível visualizar a variação, pelo que ela tem de ser comunicada através de um número num rótulo.

Esta é a secção de infografia, que se estende por várias páginas com a mesma filosofia de visualização.

Caracterização: Segurança interna

No contexto do RASI, este gráfico é dos melhores. No entanto, preferiria que fosse indicada a escala vertical, que não começa no zero (não é problemático num gráfico de linhas), mas seria mais confortável saber onde começa. Claro que a palavra “Ano” no eixo horizontal é totalmente escusada.

Mas ele contém algo que há muitos anos é uma das minhas pequenas irritações de estimação na leitura do RASI: a expressão “Gráfico ilustrativo”. Um gráfico “ilustrava” uns números no século passado, quando a compreensão dos dados se fazia a partir das tabelas de dados e os gráficos não serviam senão para quebrar a monotonia. Os gráficos não eram de todo relevantes. Hoje, os gráficos comunicam uma boa parte da mensagem, não são apêndices, não ilustram. Bastaria esta pequena expressão para demonstrar que os autores, no que respeita à visualização de dados, ainda vivem no século XX. É esta ideia de gráfico como ilustração que dá origem aos maus gráficos que vimos acima e os, ainda piores, que veremos a seguir.


Um problema comum em relatórios com vários autores é a inconsistência de estilos e, em particular, da paleta de cores utilizada. Aqui começamos a observar isso.

Isto deveria, naturalmente, ser um único gráfico, com as barras das subidas ordenadas de forma inversa, dado que as estamos a destacar. E cada barra deve ter a sua etiqueta própria, não e não uma legenda que nos obriga a fazer as correspondências.


Isto (não sei o que devo chamar-lhe) é uma das representações favoritas dos autores, este ano com um desenho mais minimalista. O total dá 100%, por isso imagino que seja um gráfico de proporções, mas de facto não as vejo representadas.


No Excel de 2007, a Microsoft introduziu um tipo de formato condicional muito útil em que era possível associar barras aos valores nas células. À boa maneira da Microsoft, que entre o marketing e a eficácia dos gráficos sabe sempre o que escolher, as barras tinham um gradiente para branco, o que dificultava a sua leitura, mas eram vistosas. Numa versão posterior, acrescentou barras sem gradiente, e a opção de incluir uma moldura nas de gradiente. São essas as usadas nesta tabela.


Entramos agora em algo que já tardava, os efeitos 3D. Este é também um dos gráficos que se tem mantido ao longo das edições. (Não tem título, pelo que não foi incluído, mas corresponde ao tipo de arma usada em homicídios.) Como se vê, os autores não se fizeram rogados, e usaram todo o arsenal de malfeitorias gráficas que tinham à disposição: uma barra circular “explodida” em 3D, ordenação alfabética das categorias, cores inconsistentes, legenda desnecessária.


Na mesma página há outros exemplos (é, aliás, uma das páginas mais gloriosa do relatório).


Na secção sobre violência doméstica, é usado o cor de rosa para as mulheres, ao contrário do gráfico acima. Não creio que seja uma boa ideia.


Finalmente, uma galeria (não exaustiva) de gráficos de barras 3D com múltiplos estilos de cores que expressam a inconsistência gráfica do relatório.

Conclusão

Há anos, num curso de formação, mostrei um mau gráfico publicado num relatório do orçamento de estado. Alguém comentou algo como “se nem sabem fazer gráficos, como podem saber governar?”. Não me parece que saber fazer gráficos tenha de ser uma competência universal, nem indicador de falta de competência noutros domínios. As críticas a este relatório são limitadas às minhas próprias competências.

No entanto, este não é um relatório qualquer. Um relatório sobre a segurança do estado deveria, como mínimo, ter uma sobriedade visual compatível com o que é reportado, sem recorrer a estes efeitos decorativos enlatados que o diminuem.

Sendo o pior dos exemplos conhecidos, o RASI não está sozinho. A cultura do “gráfico ilustrativo” que ilustra não se sabe bem o quê, e não comunica, é frequente em muitos organismos do Estado, incluindo, por exemplo, a Assembleia da República. Mas há uma insensibilidade geral à necessidade de literacia gráfica (e numérica, em geral) que é preocupante, e diverge da maioria dos países europeus.

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